LYNN HERSHMAN LEESON
Desde o início, os trabalhos de Lynn Hershman Leeson (Cleveland, EUA, 1941) anteciparam o impacto de novas tecnologias sobre a vida humana e investigaram a codificação e decodificação de identidades femininas por meio delas. Através de instalações interativas, vídeos, filmes, redes, fotografias, desenhos e outros meios, Leeson tem se debruçado sobre diversos temas que se tornaram centrais no seu trabalho, como as mutações constantes na construção do público e do privado, o eu “real” e o eu “fictício”, o feminismo, a inteligência artificial e, mais recentemente, a computação de DNA. Como em muitos de seus trabalhos, mas em especial nessa mostra, Hershman Leeson investiga sua própria autobiografia, “a história de um corpo com mais mentes do que se pode imaginar, ou a história de uma mente que se manifesta através de vários corpos”. como diria Meredith Tromble.
Essa exposição reúne seis vídeos de Hershman Leeson que investigam mais direta e profundamente a experiência de ser mulher e os traumas e violências que ela implica. A mostra também aborda o caráter performático dos gêneros no contexto das tecnologias de representação disponíveis em diferentes épocas, ao longo de quatro décadas. A questão da mulher na arte aparece com mais força à medida que observamos a marginalização e o abandono sofridos por Hershman e outras artistas mulheres. Essa mostra, portanto, é marcada principalmente pelo feminismo.
O Hotel Rooms Commercial (1974) é um anúncio produzido por Hershamn Leeson para um projeto que aconteceu em três hotéis em Nova York. A obra tramava uma narrativa associando três mulheres a três quartos de três hotéis diferentes, nos quais visitantes encontravam vestígios de suas existências – invadindo, por assim dizer, seu espaço privado –, mas que eram, ao mesmo tempo, típicos dos bairros dos hotéis. O deslocamento entre público e privado caracteriza grande parte da produção de Hershman Leeson na época. Os anúncios eram “haicais eletrônicos que, em menos de um minuto, transmitiam a essência do evento”. Além de servir o propósito mais óbvio de apresentar as diferentes pessoas que diziam ser Lynn Hershman, os anúncios também refletem sua preocupação com a multiplicação do eu e as diferentes personas que poderiam habitá-lo.
O tema foi abordado novamente por Hershman Leeson entre 1973 e 1978, com a personagem Roberta Breitmore, seu alter ego, naquilo que ela descreveu como “uma performance privada reencenada em público”. Roberta Breitmore vivia a realidade de uma mulher solteira exposta a uma sociedade patriarcal: submetia-se a sessões de psicanálise, tinha conta bancária e carteira de motorista. No vídeo Lynn Becoming Roberta (1974), vemos a transformação de uma personagem na outra, meticulosamente estudada e incorporada por Hershman Leeson, não só no que diz respeito à maquiagem, mas também aos gestos e à linguagem de Breitmore. Em B Files (1998), Leeson continua a investigar a existência de Breitmore, a partir de documentos e vestígios relacionados a seu desaparecimento físico, especulando sobre a sua vida dentro e fora de instituições.
First Person Plural: The Electronic Diaries of Lynn Hershman, 1984-1996 (1996) é um de seus trabalhos mais importantes – um imenso esforço de auto-revelação. Nele, a artista desvela a violência e os abusos que sofreu ainda criança, refletidos em desamparo e autodepreciação na vida adulta. Essa arqueologia do eu parece oferecer algum tipo de redenção, assim como a montagem do vídeo reflete uma mente perspicaz que analisa sua própria trajetória como forma de cura.
Outra obra importante incluída na mostra é o documentário ¡Women Art Revolution (2010), resultado de quarenta anos de documentação do movimento artístico feminista nos EUA. O filme constitui um manifesto produzido por Hershman Leeson e outras artistas sobre os diversos tipos de discriminação aos quais foram submetidas por serem artistas mulheres. A partir de abordagens diversas da prática artística, elas criaram plataformas nas quais podiam criticar de forma mordaz as estruturas patriarcais do mundo das artes e desenvolver trabalhos artísticos assumidamente radicais, que não se pautavam pela crítica de arte tradicionalmente dominada pelo masculino.
A construção de personagens, tanto na vida quanto na ficção – tema que interessou a Hershamn Leeson desde o início de sua trajetória artística – reaparece em seus trabalhos mais recentes, como VertiGhost (2017). Uma releitura crítica do filme Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock, o filme segue fantasmas de vários tipos, vestígios deixados por pessoas e objetos que ainda assombram o tempo presente: “Fantasmas de diferentes épocas passeiam por um purgatório de segredos e se recusam a descansar até que suas histórias sejam contadas”.
Esta exposição é uma parceria entre o Videobrasil e a KADIST. Gostaríamos de agradecer a Lynn Hershman Leeson.
Catalina Lozano
Curadora independente e Diretora de Programas da América Latina da KADIST
Hotel Rooms Commercial, 1974
Filme convertido para vídeo 4k, 1’44’’
Comerciais de TV produzidos para anunciar um projeto que Lynn Hershman Leeson realizou em Nova York, e que aconteceu em três hotéis. Dizendo ser a artista, três pessoas diferentes convidavam outras para assistir os anúncios em seus quartos. Hershman diz que os comerciais foram vistos por mais gente do que o trabalho em si. Além de algumas poucas fotografias, eles são tudo o que resta do projeto.
Lynn Becoming Roberta, 1974
Filme convertido para vídeo 4k, 5’24”
Em 1973, Lynn Hershman Leeson deu início a uma performance privada, encarnando Roberta Breitmore, personagem fictícia. O primeiro ato de Breitmore foi chegar de ônibus a San Francisco e se hospedar no Dante Hotel. Nos anos seguintes, ela se envolveu em atividades reais, como abrir uma conta de banco, requisitar cartões de crédito, alugar um apartamento, consultar um psiquiatra e aderir a modismos da época, como o EST [Erhard Seminars Training, programas que prometiam transformações pessoais rápidas] e Vigilantes do Peso. O filme mostra a metódica transformação de Hershman Leeson em Roberta, ao som da idiossincrática canção Hotel California.
B Files, 1998
Vídeo 4k, 23’30”
A história de Roberta Breitmore reemerge dos arquivos anos depois de seu desaparecimento. Um homem fica obcecado por suas origens e pelo que foi feito dela, e investiga todo tipo de especulação sobre sua vida, incluindo a hipótese de que seria filha de Walter Benjamin.
! Women Art Revolution (W.A.R.), 2010
35mm e vídeo digital, 83′
O documentário parte de centenas de horas de conversas íntimas entre Hershman Leeson e suas contemporâneas – artistas visionárias, curadoras e críticas –, nas quais elas relembram sua luta para romper com as barreiras impostas às mulheres tanto na arte quanto na sociedade em geral. O filme tem trilha sonora original de Carrie Brownstein, que integrava a banda Sleater-Kinney.
First Person Plural: The Electronic Diaries of Lynn Hershman, 1984-1996
Vídeo, 75′
Em 1984, depois de aprender a operar uma câmera de vídeo sozinha, Lynn Hershman Leeson se sentou de frente para ela e começou a falar. Antecipava o que seria lugar comum na cultura on-line de hoje: uma expressão confessional diante de um público desconhecido. Nos anos seguintes, Hershman Leeson se filmou e foi desenvolvendo uma relação profunda com a mediação que fazia de si mesma através do olhar da câmera. Alternadamente franca e astuta, honesta e performativa, ela aos poucos se volta para dentro para examinar em profundidade suas memórias fundantes de violência e dano psicológico – verdades insuportáveis, nunca ditas, que ela frequentemente via as mulheres enterrando e carregando. Ao conectar esses traumas a suas causas sistêmicas e a sua reprodução histórica, e então vocalizá-los em alto e bom som, Hershman Leeson forja um caminho artístico de sobrevivência.
VertiGhost, 2017
Vídeo, 12’47”
Comissionado pelo Fine Arts Museums of San Francisco, a obra se inspira em e reinterpreta Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock, que teve cenas-chave rodadas na Legião de Honra. VertiGhost explora a tensão entre a dificuldade (ou falta de vontade) de distinguir realidade de ficção e a busca da verdade. O filme recria cenas da obra de Hitchcock, documenta uma pintura de Amedeo Modigliani da coleção dos museus que teve sua autenticidade questionada, e inclui entrevistas sobre a construção de realidades na vida e na arte.
Mulheres artistas nas coleções KADIST e Videobrasil é o resultado de uma colaboração de seis meses entre as duas organizações. As três exposições que a parceria compreende mergulham na obra de mulheres artistas que, a partir de perspectivas e contextos diversos, exploram formas específicas de criar imagens em movimento. Abarcando sensibilidades, metodologias e meios diversos, as obras propõem, a partir de posturas claramente feministas, formas diversas de diálogo entre a prática artística, o conhecimento e a relação com o presente, reafirmando o papel da arte como força transformadora.
As duas primeiras exposições serão dedicadas à obra de Lynn Hershman Leeson (27 de setembro a 28 de novembro de 2021) e Gabriela Golder (29 de novembro de 2021 a 23 de janeiro de 2022), respectivamente. Enquanto a primeira aborda a vivência da feminilidade e da violência, e os traumas implicados, assim como a luta das mulheres artistas por igualdade de condições no mundo da arte, a segunda trata de temas que atravessam as questões de gênero, como a relação entre trabalho e identidade, desde um viés feminino e político.
Por fim, uma mostra coletiva (24 de janeiro a 27 de fevereiro de 2022) reunirá obras selecionadas das coleções do Videobrasil e da KADIST, enfatizando a diversidade de perspectivas de mulheres sobre uma miríade de temas. O programa compõe um panorama instigante da contribuição de artistas mulheres que atuam nos eixos norte e sul da arte e do mundo ao campo do vídeo – e ao enfrentamento de questões-chave do presente.
SOBRE O VIDEOBRASIL
Fundada por Solange O. Farkas, a Associação Cultural Videobrasil realiza ações curatoriais e de pesquisa com foco na produção audiovisual do Sul geopolítico do mundo. Seus projetos têm como base o Acervo Videobrasil, importante coleção de obras, publicações e documentos reunida desde a primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Videobrasil, que aconteceu em 1983, ainda sob regime ditatorial no Brasil e em quase toda a America Latina. Construído a partir do começo dos anos 1990, num processo rigoroso de qualificação e atualização, o Acervo Videobrasil reúne cerca de 1.700 obras representativas da potente cena artística do Sul – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio. É uma fonte inestimável de pesquisa sobre esta produção, que tem como marca fundadora e traço recorrente o uso político, combativo e libertário do vídeo.
SOBRE A KADIST
A KADIST acredita que os artistas contemporâneos contribuem de forma significativa para a transformação social, ao abordar em seu trabalho questões fundamentais do nosso tempo. Organização sem fins lucrativos que se dedica a difundir o trabalho dos artistas que integram sua coleção, a KADIST incentiva esse engajamento e defende um lugar central para a arte contemporânea no debate público. Em suas sedes em Paris e São Francisco, a KADIST desenvolve e apresenta exposições, residências, eventos e iniciativas educacionais, além de projetos online e nas mídias sociais. No momento, trabalha ativamente no estabelecimento de redes em cinco regiões – América do Norte, Europa, Oriente Médio & África, Ásia e América Latina –, trazendo novos artistas para a coleção e iniciando projetos colaborativos, sobretudo exposições em museus locais. Somados, esses esforços buscam criar novas conexões entre culturas e gerar discussões relevantes sobre arte e ideias contemporâneas.