HISTÓRIAS DESCOSTURADAS
Essa exposição, a última da série dedicada a artistas mulheres presentes nos acervos do KADIST e do Videobrasil, foi pensada como uma constelação que estabelece relações entre trabalhos que, apesar de intrinsecamente diversos, compõem uma colagem temporária de práticas e significados. Ela examina um grupo de mulheres que vêm usando certas estratégias conceituais e formais para indagar a história, refletir sobre o presente e propor formas não-hegemônicas de conceber a realidade. Também segue a proposta da teórica feminista da visualidade Griselda Polloc, para quem “estudar as mulheres enquanto criadoras deve ser uma das responsabilidades primordiais de uma intervenção feminista deve ser.”
Em Teomama (2018), Alicia Smith investiga narrativas mexicanas (astecas) fundadoras, ainda hoje relevantes, para invocar forças que são canalizadas através do corpo (feminino), e conectar passado e presente para atualizar identidades em constante transformação inseridas em processos históricos complexos e não necessariamente lineares. A ancestralidade também é revisitada em Das avós (2018), de Rosana Paulino, que encena uma interação amorosa com imagens de mulheres negras anônimas do Brasil colonial. A condição de mulher negra em um país forjado pela escravidão atravessa o trabalho da artista, que aqui restaura simbolicamente memórias usurpadas para descosturar uma história oficial opressivamente branca.
Em Europa Enterprise-0 (EE-0) (2018), a artista bósnia Lala Rasčic revê mitos eurocêntricos arraigados, que examina desde uma perspectiva feminista para prestar “homenagem à resistência milenar ao patriarcado (…), dando voz à transformação das raízes europeias das representações sociais tóxicas e dos castigos impostos às mulheres”. Outras formas de resistência estão presentes também em La Libertad (2016), filme de Laura Huertas Millán que acompanha a vida cotidiana da família Navarro na cidade de Santo Tomás Jalieza (Oaxaca, México), conhecida pela tradição têxtil. Em suas conversas, enquanto tecem no tear – uma tecnologia centenária –, produzindo panos com “gregas” (motivos circulares), elas imaginam um caminho em direção à liberdade, honrando as tradições e práticas de fazer mundos que dão sentido ao seu trabalho.
Em La vida em rojo (2018), Julia Mensch percorre a memória de três gerações de sua família, marcadas pela militância no partido comunista argentino. Transitando entre história pessoal e nacional, o vídeo examina o lugar da utopia diante de fatos, urgências políticas, relações afetivas. Em wa akhiran musiba (por fim, uma tragédia, 2017), a artista síria Maya Shurbaji costura episódios desconexos para compor uma narrativa que, apesar de absolutamente pessoal, fala poeticamente (e para muitos) de um trauma indizível, intimamente relacionado ao feminino.
Histórias pessoais estão presentes em todos os trabalhos selecionados para a exposição. Níveis diferentes de intimidade permitem fazer aproximações e ampliações em direção a temas mais amplos, que não estão representados mas são investigados e, às vezes, invocados pela própria imagem em movimento. Atravessa todas as obras um sujeito irresoluto, que se recompõe constantemente, cuja identidade não é fixa, mas continuamente remendada pelo trabalho de criar imagens. Diante do mito do homem branco íntegro, definido por sua identidade, propomos a realidade de uma subjetividade híbrida, descosturada, aberta, capaz de gerar meios críticos que não param de questionar como e a partir de onde a história é escrita.
Catalina Lozano, KADIST
Solange Farkas, Videobrasil
ROSANA PAULINO
Das avós, 2018
Vídeo, 9’10”
O vínculo entre o trabalho de Rosana Paulino e sua condição de mulher negra em um país forjado pela escravidão é crucial para entender sua produção. Nessa instalação, criada especialmente para a Bienal SESC_Videobrasil, fotografias de mulheres negras (escravizadas ou libertas) do Brasil colonial são acompanhadas por performances em que uma jovem tenta fazer contato com as representantes da ancestralidade. Paulino alinhava essas personagens a sua própria história de vida, buscando reconstruir laços perdidos através do resgate simbólico de inúmeras memórias usurpadas – imagens fantasma que nunca cessam de nos assombrar, exigindo inclusão em uma história do Brasil ainda só parcialmente contada.
Acervo Histórico Videobrasil
ROSANA PAULINO (Brasil, 1967)
Artista conhecida pela pesquisa ligada a questões sociais, étnicas e de gênero, seus trabalhos têm como foco principal a posição da mulher negra na sociedade brasileira e os diversos tipos de violência sofridos por essa população, em decorrência do racismo e das marcas deixadas pela escravidão. Também é pesquisadora e educadora, com doutoramento em artes visuais pela Universidade de São Paulo. Especializada em gravura pelo London Print Studio, foi bolsista da Fundação Ford e da Capes.
MAYA SHURBAJI
wa akhiran musiba, 2017
vídeo, 15’48”
Episódios aparentemente sem nexo constroem a narrativa pessoal e, até certo ponto, intransferível dessa história, na qual a tragédia é mais sombra do que fato. Entre brumas urbanas, ângulos incomuns de espaços internos, velhos filmes de infância e conversas por mensagens de texto, um trauma fica implícito. Entre roupas sem uso, corpos desfocados, guerras, interlocutores ausentes e animais indiferentes, o título do vídeo sugere o estranho alívio que a artista experimenta ao desenvolver esse ensaio poético sobre o trauma: Enfim, uma tragédia.
Acervo Histórico Videobrasil
MAYA SHURBAJI (Síria, 1979)
Produtora, cineasta, roteirista e curadora, Maya Shurbaji explora o aspecto político da narrativa em primeira pessoa, conforme sua voz se mistura à voz da consciência coletiva em seus filmes. Seu filme At last, a tragedy estreou no 68º Festival de Berlim, em 2018. Mestra em gestão cultural pela Universidade Aberta da Catalunha (Espanha), é produtora na Bidayyat for Audiovisual Arts, organização com sede em Beirute, fundada em 2013 para incentivar a produção audiovisual árabe. Foi curadora de diversos festivais de cinema, como o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Uppsala (Suécia).
JULIA MENSCH
La vida en rojo, 2018
Vídeo, 21’50”
Como se estivesse projetando imagens de uma viagem, a artista revisita lembranças de três gerações de sua família, marcada pela participação ativa no partido comunista argentino. A voz em off contextualiza e questiona imagens da casa de seus avós, slides da viagem do avô ao bloco soviético nos anos 1970, cartas e fotografias. Mais do que uma coleção de objetos pessoais ou uma histórias de argentinos que permaneceram no século 20, o filme se revela um ensaio sobre o lugar da utopia em face dos fatos, das urgências políticas e das interações afetivas entre as pessoas.
Acervo Histórico Videobrasil
JULIA MENSCH (Argentina, 1980)
Artista visual, trabalha na interseção entre texto, instalação, eventos públicos, fotografia, vídeo e palestras, investigando repercussões pessoais de temas históricos e coletivos, como a utopia comunista, o voto feminino e o modo de produção agroindustrial. Ao lado de artistas de várias nacionalidades, Integra o coletivo Palatti, que desenvolve projetos e ocupações ao redor do mundo.
LALA RAŠCIC
Europa Enterprise-0 (EE-0), 2018
Vídeo, 36’23”
Na mitologia grega, Aracne era uma mortal talentosa que desafiou Atena, deusa da sabedoria e do artesanato, a uma competição de tapeçaria – aventura da qual sairia transformada em aranha. EE-0 é o primeiro episódio do projeto Europa Enterprise, que busca leituras novas e feministas de mitos eurocêntricos, reconsiderando o significado do patrimônio cultural e da construção de artefatos para o futuro.
Em EE-0, o mito grego de Aracne é recontextualizado em um roteiro poético, num salto imaginativo da Antiguidade para a ficção científica. Narrativas da mitologia clássica são invertidas, subvertidas e combinadas com episódios anedóticos encontrados em pesquisa de campo em Prizren, Kosovo – o mais novo Estado-nação da Europa – e arredores. A ideia de uma antiga sabedoria feminina reprimida é examinada através de narrativas envolvendo mitos urbanos e usos locais, além de fenômenos sociológicos, ecológicos e culturais atuais. É o que a artista define como “uma homenagem à resistência milenar ao patriarcado (…) dando voz à transformação das raízes europeias das representações sociais tóxicas e dos castigos impostos às mulheres”.
Europa Enterprise-0 foi comissionado pelo KADIST e a Fundação Lumbardhi (Kosovo), como parte do projeto de três anos Not Fully Human, Not Human at All, curado por Nataša Petrešin-Bachelez.
Acervo KADIST
LALA RAŠCIC (Bósnia, 1977)
Em projetos que tomam a forma de vídeos, artefatos, instalações, desenhos e performances, a artista parte do interesse nas várias formas de interpretar um texto, abrangendo práticas narrativas ancestrais e contemporâneas, história oral e monólogos. Inspirada na estética das velhas peças radiofônicas, com frequência interpreta papéis múltiplos e joga com temporalidades e realidades diversas. Preside o conselho do coletivo Crvena, de artistas, produtores e teóricos que trabalham com arte, cultura, feminismo, educação, ecologia, igualdade de gêneros e direitos humanos nos países da antiga Iugoslávia.
LAURA HUERTAS MILLÁN
La libertad, 2016
Vídeo, 29’52”
O filme é uma “grega”, uma curva, sem começo nem fim; costura fragmentos da vida diária das Navarro, que contam fios e o tempo, se perguntam sobre e perambulam em torno de palavras como emancipação, trabalho e liberdade. A “grega”, a curva, é o principal símbolo inscrito nos têxteis feitos pelas irmãs Navarro, de Santo Tomás Jalieza, no México. Forma geométrica de uma trança de diamantes infinita, a “grega” representa o milho, entidade adorada pelas civilizações pré-hispânicas da América Central. Simboliza o sustento, mas também o poder feminino de produzir abundância e fertilidade. Tecidos estampados com esses motivos contínuos podem ser lidos como uma invocação à vida e ao crescimento.
Animais, objetos e espaços são representados nos panos das Navarro. Seus tecidos são feitos em tear, técnica pré-hispânica preservada pelas mulheres indígenas por séculos. Com seus têxteis, as mulheres construíram partes de uma história paralela dos cruzamentos culturais, da “mestiçagem”, do colonialismo e da modernidade no México. Ecoando a política e a ética representadas nos objetos que tecem, as Navarro construíram um micro-sociedade familiar e ecológica, que anseia por independência.
Acervo KADIST
LAURA HUERTAS MILLÁN (Colômbia, 1983)
Seus filmes e obras de cinema expandido olham para a estética e a política através de uma diversidade de narrativas e formatos. Em 2009, iniciou uma série de trabalhos sobre a ideia de exotismo, inspirados nos registros pungentes dos zoológicos humanos franceses do começo do século 20, a antropofagia cultural (como definida por Oswald de Andrade em 1928) e relatos de viajantes à América. Os filmes constroem uma dialética entre etnografia e colonialismo, propondo narrativas híbridas e sem hierarquia, entre ficção científica, surrealismo, fantasia e documentário. Desde 2012, desenvolve uma pesquisa prática de doutorado em cinema em torno de “ficções etnográficas”.
ALICIA SMITH
Teomama, 2018
Vídeo, 5’41”
Na língua asteca nahuatl, teomama significa aquele que carrega deus. Era o nome dado aos xamãs que carregavam os ossos de Huitzilopochtl, deus da guerra, do sol e do sacrifício humano no México antigo, e divindade nacional dos astecas. Das muitas lendas que protagoniza, a história da origem de Tenochtitlan (atual Cidade do México) é das mais conhecidas. Conta-se que Huitzilopochtl instruiu os astecas a abandonar suas terras em Aztlán e procurar um novo lugar para se estabelecer. Por 200 anos, os teomamas carregaram os ossos pelo Anahuac (bacia hidrográfica que constituía o centro original do México), procurando um sinal de que haviam chegado à nova casa. Finalmente o viram ao atingir o lago Texcoco: uma águia devorava uma cobra entre os espinhos de um figo-da-índia, marcando o lugar onde seria seguro construir sua cidade. Símbolo da união entre o céu e a terra, hoje a imagem pode ser vista no brasão da bandeira mexicana.
No trabalho, a artista atua tanto como teomama quanto como Tenochtitlan. Está imersa até a cintura em um lago tranquilo, o torso debruçado sobre a água parada, cabelo e roupa sumindo no próprio reflexo. O longo vestido branco é preso na cintura com um cinto similar aos dos sacerdotes astecas, e seu corpo encurvado lembra a ilha de Tenochtitlan: ela é terra, um prato de oferenda, e carrega Deus nas costas. Sua postura é de abjeção, há muito entendida por seus ancestrais como ferramenta para acessar o sublime.
Acervo KADIST
ALICIA SMITH (EUA, 1962)
Artista e ativista Chicana, seu trabalho explora o abjeto e o sublime para investigar ideias relacionadas à tensão entre ganância e reverência e seu impacto ambiental, além de nossa relação com o corpo feminino. Recorrendo a vídeo, performance, gravura e escultura, busca dissolver símbolos romantizados que negam à mulher indígena suas complexidades, ao mesmo tempo em que expõem sua beleza e força. Define sua prática artística como uma forma de analisar a complicada relação entre sua herança mestiça, a terra e seu corpo, que retrata com poderosas imagens visuais.
Mulheres artistas nas coleções KADIST e Videobrasil é o resultado de uma colaboração de seis meses entre as duas organizações. As três exposições que a parceria compreende mergulham na obra de mulheres artistas que, a partir de perspectivas e contextos diversos, exploram formas específicas de criar imagens em movimento. Abarcando sensibilidades, metodologias e meios diversos, as obras propõem, a partir de posturas claramente feministas, formas diversas de diálogo entre a prática artística, o conhecimento e a relação com o presente, reafirmando o papel da arte como força transformadora.
As duas primeiras exposições serão dedicadas à obra de Lynn Hershman Leeson (27 de setembro a 28 de novembro de 2021) e Gabriela Golder (29 de novembro de 2021 a 06 de fevereiro de 2022), respectivamente. Enquanto a primeira aborda a vivência da feminilidade e da violência, e os traumas implicados, assim como a luta das mulheres artistas por igualdade de condições no mundo da arte, a segunda trata de temas que atravessam as questões de gênero, como a relação entre trabalho e identidade, desde um viés feminino e político.
Por fim, uma mostra coletiva (07 de fevereiro a 03 de abril de 2022) reunirá obras selecionadas das coleções do Videobrasil e da KADIST, enfatizando a diversidade de perspectivas de mulheres sobre uma miríade de temas. O programa compõe um panorama instigante da contribuição de artistas mulheres que atuam nos eixos norte e sul da arte e do mundo ao campo do vídeo – e ao enfrentamento de questões-chave do presente.
SOBRE O VIDEOBRASIL
Fundada por Solange O. Farkas, a Associação Cultural Videobrasil realiza ações curatoriais e de pesquisa com foco na produção audiovisual do Sul geopolítico do mundo. Seus projetos têm como base o Acervo Videobrasil, importante coleção de obras, publicações e documentos reunida desde a primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Videobrasil, que aconteceu em 1983, ainda sob regime ditatorial no Brasil e em quase toda a America Latina. Construído a partir do começo dos anos 1990, num processo rigoroso de qualificação e atualização, o Acervo Videobrasil reúne cerca de 1.700 obras representativas da potente cena artística do Sul – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio. É uma fonte inestimável de pesquisa sobre esta produção, que tem como marca fundadora e traço recorrente o uso político, combativo e libertário do vídeo.
SOBRE A KADIST
A KADIST acredita que os artistas contemporâneos contribuem de forma significativa para a transformação social, ao abordar em seu trabalho questões fundamentais do nosso tempo. Organização sem fins lucrativos que se dedica a difundir o trabalho dos artistas que integram sua coleção, a KADIST incentiva esse engajamento e defende um lugar central para a arte contemporânea no debate público. Em suas sedes em Paris e São Francisco, a KADIST desenvolve e apresenta exposições, residências, eventos e iniciativas educacionais, além de projetos online e nas mídias sociais. No momento, trabalha ativamente no estabelecimento de redes em cinco regiões – América do Norte, Europa, Oriente Médio & África, Ásia e América Latina –, trazendo novos artistas para a coleção e iniciando projetos colaborativos, sobretudo exposições em museus locais. Somados, esses esforços buscam criar novas conexões entre culturas e gerar discussões relevantes sobre arte e ideias contemporâneas.