GABRIELA GOLDER
Gabriela Golder é uma das artistas sul-americanas mais presentes no Acervo Videobrasil, e não por acaso. Como alguns outros artistas egressos do Sul geopolítico que ganharam proeminência no cenário internacional nas últimas décadas, ela encontrou na Bienal Videobrasil um espaço importante de reverberação e visibilidade. Essa mostra reúne as obras que marcaram as participações da artista argentina na Bienal, cobrindo um período que vai do início de seu trajeto até seu trabalho mais recente, realizado em 2020/21, quando, como todos nós, ela passava os dias vendo o mundo pela janela. O conjunto evidencia a evolução de uma pesquisa que, partindo de um olhar inquieto, inquisitivo e amoroso, se amplia e explora novos universos, sem perder sua matiz particular de contundência política e de preocupação social.
Criança da ditadura argentina, regime sanguinário que se impôs ao país por dez anos, Gabriela Golder revisita as lembranças confusas de uma infância de afeto familiar e brutalidade à toda volta em En memoria de los pájaros, de 2000, sua estreia no festival. Dois anos depois, revela uma potência concentrada em Vacas (2002). Aplicando um procedimento clássico da videoarte a uma cena (demasiadamente) real, a artista cria não uma metáfora, mas um retrato acabado dos efeitos da turbulenta crise econômica argentina de 2001. A obra ganha menção honrosa do júri do Festival.
Conversation piece vem a seguir, em 2012, selecionado para o 18º Festival. Uma aula introdutória de marxismo em moldura que remete aos gostos da burguesia europeia do século 18, o tríptico expõe, com certa ironia, questões que nunca se resolvem e ideias que precisam ser revisitadas.
Em 2019, a artista conquista o Grande Prêmio da 21ª Bienal com Laboratorio de invención social (o posibles formas de construcción colectiva), instalação baseada na experiência de grupos de operários argentinos que se organizaram para assumir a gestão de fábricas falidas a partir da primeira década do século 21. Discutindo as perspectivas do trabalho na atualidade, a obra toca no tema-chave da 21ª Bienal: as novas comunidades e formas de organização coletiva, baseadas em afeto e afinidade, que buscam fazer frente à ordem capitalista. “É como se as engrenagens da fábrica fossem engrenagens de possibilidades”, diz a artista, sobre o trabalho.
Às obras apresentadas na Bienal, a mostra acrescenta uma versão de 52 tonos de azul, instalação em múltiplos canais que a artista produziu durante a pandemia da Covid-19. Olhando para os céus de Buenos Aires, e para imagens do céu captadas por amigos em outros lugares, ela se pergunta que tipo de resposta eles têm nos oferecer. Como em todo seu trabalho, busca, desde um mundo de subjetividade e de forma sempre particular, questões e temas compartilháveis, que dizem respeito a muitos outros – seja o impacto pessoal da memória nacional, seja a questão social, sempre tão premente, seja o silêncio existencial que se revela no isolamento.
Dando continuidade à série Mulheres artistas nas coleções KADIST e Videobrasil, parceria que revela olhares femininos e feministas nos acervos das duas instituições, a mostra dedicada a Gabriela Golder contribui com uma mirada que atravessa questões de gênero na busca de um lugar mais justo e equânime – em muitos sentidos.
Solange Farkas é diretora da Associação Cultural Videobrasil
Gabriela Golder (Buenos Aires, Argentina, 1971)
Artista visual, curadora e professora, é codiretora da Bienal da Imagem em Movimento (BIM) e do CONTINENTE (Centro de Investigación en Artes Audiovisuales de la Universidad Nacional de Tres de Febrero), e curadora do festival El Cine es Otra Cosa, do Museo de Arte Moderno, todos em Buenos Aires. Formada em cinema na Argentina e em hipermídias em Paris, é professora de graduação e pós-graduação em tecnologia e estética das universidades argentinas Tres de Febrero, Universidad del Cine e Maimónides. Trabalha com vídeo, instalações e intervenções site specific, explorando questões de memória, identidade e o mundo do trabalho. Fez residências artísticas no Banff Centre for the Arts (Canadá), no Centre International de Création Vidéo Pierre Schaeffer (França) e no Wexner Center for the Arts (Estados Unidos), entre outros, além de participações premiadas em exposições e festivais no Brasil, Argentina, Alemanha, França e Japão. Vive e trabalha em Buenos Aires.
En memoria de los pájaros, 2000
Vídeo, 18′
A artista tinha cinco anos quando a ditadura militar foi instaurada na Argentina, em 1976. Aqui, ela reconstrói meticulosamente pedaços de um passado que se dissolve, opondo imagens e testemunhos que falam de opressão, medo, tortura e crueldade, e memórias de uma infância feliz em Super-8. “Eu vi tudo. Eu não vi nada”, conclui.
Vacas, 2002
Vídeo, 4’10”
Obra construída a partir de imagens noticiosas de um fato real, ocorrido em Rosário, terceira maior cidade argentina, em março de 2002. Depois que um caminhão que transportava vacas tomba e os animais se espalham pelo asfalto, centenas de pessoas caem sobre eles, abatendo-os e retalhando sua carne para levar para casa.
Conversation Piece, 2012
Vídeo em três canais, 19’26”
Em um tríptico de composição clássica, que remete às pinturas/retratos grupais do século 18, duas meninas leem o Manifesto comunista com a avó. Conforme avançam, fazem perguntas, que a avó responde. A obra explora a perplexidade diante de questões que desafiam a passagem do tempo e a revisão histórica que se impõe.
Laboratorio de invención social o posibles formas de construcción colectiva, 2018
Vídeo em quatro canais, duração variável
Partindo da experiência de operários argentinos que ocuparam fábricas falidas e instauraram sistemas de autogestão, a partir do início da década de 2000, a artista propõe uma discussão sobre o trabalho hoje e as possibilidades de construção coletiva. Imagens e falas dos trabalhadores envolvidos em ocupações e cooperativas povoam os vídeos e o jornal impresso que integrava a instalação original. A obra ganhou o Grande Prêmio da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (prêmio Estado da Arte – Electrica Cinema e Video).
52 tonos de azul, 2021
Vídeo em três canais, 28′
Contemplar o céu era parte da rotina da artista durante a pandemia. Aqui, ela usa redes neurais artificiais, alimentadas com noções de teoria da cor, astronomia, meteorologia, ornitologia, geografia e história das explorações, entre outras, como “intérpretes poéticos” de imagens do céu gravadas por ela e por amigos nesse período. Assim, pretende desvendar o que cada um daqueles céus tinha a lhe dizer.
Mulheres artistas nas coleções KADIST e Videobrasil é o resultado de uma colaboração de seis meses entre as duas organizações. As três exposições que a parceria compreende mergulham na obra de mulheres artistas que, a partir de perspectivas e contextos diversos, exploram formas específicas de criar imagens em movimento. Abarcando sensibilidades, metodologias e meios diversos, as obras propõem, a partir de posturas claramente feministas, formas diversas de diálogo entre a prática artística, o conhecimento e a relação com o presente, reafirmando o papel da arte como força transformadora.
As duas primeiras exposições serão dedicadas à obra de Lynn Hershman Leeson (27 de setembro a 28 de novembro de 2021) e Gabriela Golder (29 de novembro de 2021 a 23 de janeiro de 2022), respectivamente. Enquanto a primeira aborda a vivência da feminilidade e da violência, e os traumas implicados, assim como a luta das mulheres artistas por igualdade de condições no mundo da arte, a segunda trata de temas que atravessam as questões de gênero, como a relação entre trabalho e identidade, desde um viés feminino e político.
Por fim, uma mostra coletiva (24 de janeiro a 27 de fevereiro de 2022) reunirá obras selecionadas das coleções do Videobrasil e da KADIST, enfatizando a diversidade de perspectivas de mulheres sobre uma miríade de temas. O programa compõe um panorama instigante da contribuição de artistas mulheres que atuam nos eixos norte e sul da arte e do mundo ao campo do vídeo – e ao enfrentamento de questões-chave do presente.
SOBRE O VIDEOBRASIL
Fundada por Solange O. Farkas, a Associação Cultural Videobrasil realiza ações curatoriais e de pesquisa com foco na produção audiovisual do Sul geopolítico do mundo. Seus projetos têm como base o Acervo Videobrasil, importante coleção de obras, publicações e documentos reunida desde a primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Videobrasil, que aconteceu em 1983, ainda sob regime ditatorial no Brasil e em quase toda a America Latina. Construído a partir do começo dos anos 1990, num processo rigoroso de qualificação e atualização, o Acervo Videobrasil reúne cerca de 1.700 obras representativas da potente cena artística do Sul – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio. É uma fonte inestimável de pesquisa sobre esta produção, que tem como marca fundadora e traço recorrente o uso político, combativo e libertário do vídeo.
SOBRE A KADIST
A KADIST acredita que os artistas contemporâneos contribuem de forma significativa para a transformação social, ao abordar em seu trabalho questões fundamentais do nosso tempo. Organização sem fins lucrativos que se dedica a difundir o trabalho dos artistas que integram sua coleção, a KADIST incentiva esse engajamento e defende um lugar central para a arte contemporânea no debate público. Em suas sedes em Paris e São Francisco, a KADIST desenvolve e apresenta exposições, residências, eventos e iniciativas educacionais, além de projetos online e nas mídias sociais. No momento, trabalha ativamente no estabelecimento de redes em cinco regiões – América do Norte, Europa, Oriente Médio & África, Ásia e América Latina –, trazendo novos artistas para a coleção e iniciando projetos colaborativos, sobretudo exposições em museus locais. Somados, esses esforços buscam criar novas conexões entre culturas e gerar discussões relevantes sobre arte e ideias contemporâneas.